Mais do que uma festa: Carnaval de BH se consolida como espaço de discussões e protestos
Causas políticas e sociais ganham espaço nos diálogos durante o evento que reúne milhões de pessoas
Por Daniele Franco
Nos desfiles de Carnaval que salpicaram as ruas de BH de cores, glitter e fantasias, foi comum ver bandeiras e ouvir brados de uma série de lutas sociais, políticas e identitárias, como a LGBT, a racial e a feminista. Ao contrário do que se ouve por aí, tais características dão um tom a mais do que o evidente entretenimento à festa, que passa a ser um espaço de discussões políticas e sociais.
“O Carnaval de BH não nasceu pela farra”, resume Lucas Nascimento, co-fundador do bloco afro Angola Janga, o maior de Minas Gerais com a temática. E essa forte mistura entre diversão e luta marca a folia da capital mineira desde primeira faísca do boom que a transformou em uma das maiores do país, tendo atraído em 2018 quase 4 milhões de pessoas para a festa.
O próprio Angola Janga, que em
seu desfile no Domingo de Carnaval arrastou uma média de 150 mil foliões ao
longo da avenida Amazonas, agitou o público com mais do que os ritmos afro. Homenageando
os tambores mineiros, o cortejo do bloco trouxe uma série de questões sobre
representatividade, racismo e a luta pela ocupação dos espaços públicos. “Se o
povo não ocupa, o crime ocupa, o poder privado ocupa”, defende Nascimento.
Outro caso emblemático do uso do Carnaval como espaço de lutas e protestos é o do bloco Alô, Abacaxi, que, com apenas dois anos desfilando em BH, já arrasta uma multidão atrás do arco-íris da bandeira LGBT. “O abacaxi representa o preconceito, os problemas que enfrentamos todos os dias e devemos descasca-los em busca de soluções”, contou ao SouBH o produtor do bloco, Bruno Perdigão.
Além do tratamento dos blocos sobre os assuntos, o público também abraça as causas e apoia as bandeiras mesmo que não sejam exatamente suas. Perdigão conta que o Alô, Abacaxi recebe diversas mensagens de pessoas LGBT, mães e pais e apoiadores da causa defendida pelo bloco.
Feito por mulheres para mulheres, o Bruta Flor, que desfila em BH desde 2016, tem como pauta o acolhimento de mulheres de todos os tipos. “Através do Carnaval, levamos às mais diversas mulheres a oportunidade de cantar, tocar, mesmo sem experiência, e ser protagonista, o que nos transforma num movimento genuinamente feminista”, conta Bella Santos, organizadora do Bruta Flor, que também acrescenta a luta contra o assédio e pelo direito das mulheres ao próprio corpo à pauta do bloco.
O Então, Brilha!, por sua vez, não defende uma bandeira única. Di Souza, maestro e organizador do bloco que levou mais de 400 mil pessoas ao Centro de BH neste ano, esclarece que as principais lutas do Brilha são a ocupação do espaço público e a diversidade em todos os âmbitos. “Nossa bandeira defende todas as lutas que tenham como pauta o brilho das pessoas”.
Espaço de debates
Bella Santos chama a atenção para o momento do Carnaval como espaço de proliferação de discussões. “Durante a festa, nós temos a oportunidade de levantar nossa voz para pautas que acabam sendo discutidas para o resto do ano. É uma porta de entrada”.
Um dos pontos em comum defendidos por todos os blocos, independentemente da causa, é a tratativa dos temas, que, pelo clima de festa, se afasta do radicalismo. "No Carnaval nós podemos ser livres e discutir de maneira lúdica as causas que defendemos, é quando tratamos nossas diferenças com muito mais leveza, o que abre esse espaço para o debate", afirma Bruno Perdigão.
Rafael “Tcha Tcha” Barros, folião antropólogo e um dos fundadores do icônico Filhos de Tcha Tcha, concorda e classifica o Carnaval como um espaço de elaboração crítica. "As questões políticas são sempre colocadas durante as festas e a mobilização popular contribui para que os assuntos sejam amplamente discutidos". Rafael ainda lembra que, mesmo com esse avanço, ainda existe uma certa letargia entre a população. "Temos no Brasil uma formação crítica, política e cultural deficitária, o que gera um apaziguamento da sociedade diante de certos assuntos".
Histórico de luta
Um dos pontapés iniciais para a manifestação político-cultural que deu origem ao Carnaval belo-horizontino foi um decreto assinado em 2009 pelo então prefeito Marcio Lacerda (PSD) proibindo eventos de qualquer natureza na Praça da Estação.
“Começava a se instaurar uma política higienista e o Carnaval foi uma arma, um signo para que as lutas sociais da cidade se encontrassem e ocupassem os espaços públicos”, conta Rafael Tcha Tcha, cujo cortejo com o Filhos de Tcha Tcha sai pelas ruas belo-horizontinas desde 2009, sendo um dos blocos mais tradicionais da cidade.
Para Tcha Tcha, o Carnaval se configurou como “um caldeirão de pautas e lutas” que já efervesciam nas periferias e nos centros de debate. Lucas Nascimento ainda completa dizendo que, mesmo que só tenha ganhado a força que tem hoje depois de 2009, “o Carnaval nunca morreu nas favelas”.